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O COLECIONADOR

João Zé nasceu sorrindo. Mas, a parteira, com fama de vidente na cidade, quando encarou os olhos azuis da criança logo pensou: mais um ser diabólico que chega ao mundo!
Na cidade estúpida de João Zé, os moradores tinham um grande apreço por espelhos, os mais afortunados colocavam até no jardim de suas casas, gostavam de refletir a beleza de suas conquistas. Pois bem, voltando a falar de João Zé, conforme o tempo passava ele conquistava a fama de um garoto sedutor e um exímio colecionador de espelhos, de todas as formas e tamanhos, com molduras de várias cores, azul, amarelo, verde e uma pequena em especial, banhada a ouro, feita por um famoso artista da cidade, que fora presente de seus pais e que, agora, servia como adorno na cabeceira de sua cama. E, assim, o jovem seguia seu caminho… Um sorriso aqui, um espelho ali. Até receber uma carta:

“”

Vaidópolis, 1988.

João Zé,
Acreditei que poderia ter um amigo. Como você pode fazer isso comigo? Contei para você todas as minhas confidências, cruzes! Cada passo, cada respiro. Ah! João Zé, você com a aquela conversa mansa, acreditei mesmo… E fui falando e fui deixando você entrar na minha vida. Sentia falta de um irmão. Quebrei o meu orgulho, acreditando que dessa vez valeria a pena. Nossa! Nunca imaginei que pudesse existir uma amizade assim, vai ver que é porque eu tinha sonhado, um dia, pedindo isso para o pai-do-céu. Ai, sonho demais não é, João Zé? Que besteira acreditar que unidos venceríamos o mundo inteiro.

Mas, você me traiu João Zé, você arrumou outro amigo na escola e esqueceu tudo e você falou o que não devia e você disse que já não se importava com o que eu pensasse. Que eu era um narcisista puro. Isso doeu. Vai ver que sou mesmo. Mas, agora, percebo que narcisistas somos todos nós, certo? E segredo não se tem, porque a boca sempre trai. A maldita boca sempre trai. Mas, quando contei teu segredo para minha família, todos te aceitaram mesmo assim. Eles sabiam que a tua companhia me tiraria do quarto e de dentro dos livros.

Agora, com 15 anos completos – sim, hoje é o meu aniversário – percebo o quanto era bom ficar sozinho no meu canto, estava seguro lá. Meu pai achava estranho, um garoto da minha idade: cabelos sempre escorridos, magro; ficar tanto tempo num lugar. Tão diferente dos outros meninos. Culpavam a minha atitude pela morte de minha mãe – Fase! Diziam. Eu adorava ficar sozinho com os meus fantasmas, era minha fuga até te conhecer.

E por conta do teu desprezo, não peguei mais na mão de ninguém, desliguei o rádio, pintei o espelho do nosso jardim com tinta preta, voltei a desenhar seres imaginários no ar, a conversar com as nuvens. Não liguei na madrugada (escondido do meu pai) para falar sobre literatura com mais ninguém. Como viajávamos neste assunto, quantos livros lidos juntos, ideias, discussões, finalizadas sempre com o sorriso certo de que aprendíamos alguma coisa.

Vou te confidenciar uma última história, meu amigo. Sonhei, na noite passada, com a minha mãe, ela disse: nunca delegue todo sentimento de amizade para uma pessoa só, divida com os outros. Ela estava de roupas novas, e falou que é tempo de mudanças, novamente… Ai! Não tenho mais forças para mudanças, já fiz tantas. Estou cansado, sabe.

No começo achei que fosse ciúme do seu novo amigo, mas não era. Você não apareceu mais, não quis mais saber das minhas histórias tristes e de euforias. Os livros viraram pó na estante da nossa amizade. Ai, João Zé, você riu hein? Ficou feliz com o dito sentimento meu. E eu acreditava em você, minha nossa! Eu acreditava.
Tarefa pronta. Não confio nem na minha própria sombra. Você foi o último, João Zé.
Entre pulsos e impulsos, fico com o silêncio. Do meu quarto.

””

Silenciosamente, João Zé amassa a carta, solta um riso irônico e resmunga: mais um com o espelho quebrado.

n.p. 

11 de dezembro – Bazar Estiloarte 4

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